(D.H. Lawrence - Tradução de Rui Rosado) | ||
I | ||
Agora é o Outono, o cair dos frutos | ||
e a longa viagem para o esquecimento. | ||
As maçãs que caem como grandes gotas de orvalho | ||
Conseguem ferir uma saída de si próprias. | ||
É tempo de ir, do adeus | ||
ao próprio eu, de encontrar uma saída | ||
do eu caído. | ||
II | ||
Já construiste a tua barca da morte, a tua?. | ||
Constrói a tua barca da morte, vais precisar dela. | ||
Não tarda a geada impiedosa, e cairão as maçãs | ||
pesadas, quase retumbantes, na terra ressequida. | ||
E, no ar, a morte como um cheiro de cinzas! | ||
Não a sentes? | ||
E no corpo ferido, a alma assustada | ||
fica encolhida, contraíndo-se do frio | ||
que sopra sobre ela pelos orifícios. | ||
III | ||
E consegue um homem a sua quietude | ||
com um punhal nu? | ||
Com adagas, punhais, balas, um homem consegue | ||
uma fenda ou ferida para sair a vida; | ||
mas é isso a quietude, diz-me, a quietude? | ||
Claro que não! como pode um crime, mesmo contra si | ||
criar quietude? | ||
IV | ||
Falemos de quietudes que conhecemos, | ||
das que podemos conhecer, de profundas e ternas quietudes | ||
num coração forte e em paz! | ||
Como tornar, isto em quietude nossa? | ||
V | ||
Constrói, pois, a barca da morte, que vais partir | ||
na mais longa viagem, para o esquecimento. | ||
E morre a morte, a longa e dolorida morte | ||
que fica entre o velho e o novo eu. | ||
Caíram-nos já, feridos, rasgados, os corpos, | ||
esvaem-se-nos já as almas pela saída | ||
dessa cruel ferida. | ||
O oceano sombrio, infindável, do fim | ||
espraia-se já pelas nossas rebentadas chagas, | ||
abate-se já sobre nós o dilúvio. | ||
Constrói a tua barca da morte, a tua pequena arca | ||
abastece-a com comida biscoitos e vinho, | ||
para o obscuro voo no esquecimento. | ||
VI | ||
Pouco a pouco o corpo morre, e a alma tímida | ||
vê o suporte levado no erguer do negro dilúvio. | ||
Morrendo, estamos morrendo, estamos todos morrendo | ||
e nada deterá o dilúvio de morte que cresce em nós | ||
e não tarda a erguer-se sobre o mundo, sobre o mundo exterior. | ||
Morrendo, estamos morrendo, pouco a pouco morrendo | ||
e abandona-nos o ânimo, | ||
e abriga-se a alma nua na chuva negra sobre o dilúvio | ||
abrigando-se nos últimos ramos da árvore da nossa vida. | ||
VII | ||
Morrendo, estamos morrendo, agora só nos resta | ||
aceitar a morte, e construir a barca | ||
da morte que nos leve a alma na mais longa viagem. | ||
Uma pequena barca, com remos e comida | ||
e pequenos pratos, e todo o apetrechamento | ||
pronto e necessário à alma de partida. | ||
Agora, lança à água a pequena barca, agora, que o corpo morre | ||
e a vida parte, lança a alma frágil | ||
na frágil barca da coragem, na arca da fé, | ||
com os mantimentos, as pequenas caçarolas | ||
e as mudas de roupa; | ||
no negro deserto do dilúvio | ||
nas águas do fim | ||
no mar da morte, onde navegamos ainda, | ||
às escuras, porque não temos leme nem existe porto. | ||
Não há porto, nenhum sítio para onde ir | ||
apenas o negrume que se aprofunda e escurece mais, | ||
mais negro sobre o dilúvio silencioso e inagitado | ||
escuridão após escuridão, para cima e para baixo | ||
e pelos lados absoluta escuridão, já não pode haver direção. | ||
E a pequena barca está lá, e contudo partiu. | ||
Não pode ser vista, porque nada o permite. | ||
Desapareceu! partiu! e contudo está | ||
em algum lado. | ||
Em lado algum! | ||
VIII | ||
E tudo partiu, o corpo partiu | ||
submerso, desaparecido, inteiramente desaparecido. | ||
A escuridão de cima é tão densa como a de baixo, | ||
por entre elas a pequena barca | ||
partiu | ||
desapareceu. | ||
É o fim, é o esquecimento. | ||
IX | ||
E, contudo, da eternidade separa-se | ||
um filamento sobre o negrume, | ||
um filamento horizontal | ||
que se eleva palidamente sobre o escuro. | ||
Será ilusão ou eleva-se essa palidez | ||
um pouco mais alto? | ||
Mas espera, espera, porque há a madrugada, | ||
a madrugada cruel do regresso à vida | ||
após o esquecimento. | ||
Espera, espera, a pequena barca | ||
à deriva, debaixo do cinzento mortal das cinzas | ||
duma madrugada de dilúvio. | ||
Espera, espera! mesmo assim uma réstea de amarelo | ||
e, por estranho, alma cansada e fria, uma réstea de rosa. | ||
Uma réstea de rosa, e tudo isto recomeça. | ||
X | ||
Desde o dilúvio, e o corpo, como uma concha polida | ||
emerge extraordinário e belo. | ||
E a pequena barca torna a casa, deslizando, trêmula, | ||
sobre as águas do dilúvio róseo, | ||
e a frágil alma desembarca, volta a casa | ||
enchendo de paz o coração. | ||
O coração renovado embala-se na paz, | ||
mesmo na do próprio esquecimento | . | |
Constrói a tua barca da morte, a tua! | ||
vais precisar dela. | ||
Espera-te a viagem do esquecimento. fonte - |
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terça-feira, 1 de novembro de 2011
A Barca da Morte
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